Há quase 4 anos , resolvemos - eu e meu super companheiro - viajar para Portugal por 3 meses e "ver o que está rolando por lá". Desembarcamos no auge do verão em Lisboa, entusiasmados para aproveitar muitos dias de sol, praias, estrada, campings, imperiais e ameijôas. Sonhadora que sou, não nego que pude imaginar o tanto de experiências que viveríamos do lado de cá do Atlântico, mas aqui confesso que nunca, nunquinha, em momento algum, j-a-m-a-i-s pude visualizar tamanha transformação que viveria em solo português.
Com o passar do tempo, as passagens de volta rasgadas, e já estudando e trabalhando, vivemos na pele a nossa primeira grande transmutação: de não sermos mais apenas turistas, e sim (como-demorei-pra-aceitar-isso) um casal de imigrantes. Expatriados! Pois! Alma não tem nacionalidade, é verdade, mas como diria Mia Couto "Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras..." e a partir de uma das duas únicas nações possíveis, concordando com o escritor moçambicano – a dos vivos e dos mortos -, nos subdividiram em muitas outras, até sermos assim classificados ao decidir morar em "terra alheia". Pois então, agora já não éramos aqueles viajantes aventureiros em busca das melhores paisagens e encontros com pessoas e culturas diversas, excitados pela música, culinária e costumes locais. Apesar desse desejo no olhar perdurar até os dias de hoje, nos preparamos pra ficar (e ir ficando...) e nos deparamos com um terreno cheio de burocracias e desafios a ultrapassar para continuar aproveitando essa oportunidade e experienciando a dádiva de se reinventar longe de nossa pátria-mãe.
Mas, um dia, um belo dia, um belíssimo dia de verão ensolarado, exatamente dois anos após pousar na poética cidade de Fernando Pessoa - que tanto nos encantou, nos ofertou e nos conquistou, após dois anos existindo/resistindo, entre altos e baixos, invernos e verões, saudades sutis e saudades avassaladoras, aconteceu o maior dos acontecimentos de uma vida inteira. De duas vidas inteiras. Três. TRÊS vidas, inteiras. Vidas. Três. Inteiras.
E quando, de repente, semente brotou,
a vida se desdobrou num instante assim:
parece num gole bebi o planeta
e não carece que haja princípio ou fim.
o que há é corrido natural,
o meio, o tanto enquanto sem enfim.
o que é colossal ou é miudim,
um passarim ou um cometa
avoando igual por dentro de mim.
da nossa galáxia o pulso vital
em dois coração se arritimou
ecoando truvão e vendaval
no céu de um peito sonhadô...
E, assim, com a descoberta dessa nova vida crescendo em mim, surge um sentimento que viveu adormecido nesse tempo de total entrega e confiança à nova vida que nos propomos a viver intensamente quando saímos de nossa cidade natal: o medo!
Uma madrugada inteira pensando e refletindo sobre o futuro, ouvindo com atenção todos os pedidos justificados de familiares e amigos para que voltássemos ao Brasil, medindo prós e contras, vendo e revendo o filme das nossas vidas até ali, um verdadeiro emaranhado de pensamentos e sensações novas. Tudo novo. De novo.
Ao amanhecer, "fomos à isto" como se diz por aqui. Fazer o que era preciso ser feito. E aí é que está o ponto do nosso encontro. Aí é que se revela o peso de nossas escolhas. Que pesa em um lado e, certamente, levita no outro.
Encarar os desafios de estar longe da família em um momento único. Conviver com a culpa de privar nossos pais (os quatro se tornando avós pela primeira vez!) e todos que amamos de vivenciar ao nosso lado essa experiência. Pular de cabeça para fora da zona de conforto. Superar as burocracias de ser uma imigrante sem documentos em busca de atendimento médico no Sistema Nacional de Saúde. Aprender a batalhar pelo pré-natal. Reconhecer a xenofobia estrutural. Lidar com ela. Respirar a palavra SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras). Entender o que significa ter (ou não) um contrato de trabalho e contribuir (ou não) para a Segurança Social, que como mostram os últimos dados, obtem um saldo positivo de 651 milhões de euros entre as contribuições dos imigrantes (regulares ou não) para os cofres do Estado. Dar valor ao que te construiu como pessoa e cidadã. Aceitar as diferenças culturais e confiar no acompanhamento disponível. Usufruir de um SNS digno. Ver amadurecer o novo núcleo famíliar. Colher frutos por cultivar uma relação amorosa, verdadeira, compreensiva. Fortalecer os laços de amizade. Saborear as surpresas do caminho, que tece à sua volta uma rede de apoio inimaginável. Por vezes, se sentir muito distante. Por outras, mais perto que nunca, ligada à sua origem pelo fio condutor do amor ao sentir um doce aconchego a cada vídeochamada com quem zela por você, sem medir tempo ou espaço. (um salve aqui à tecnologia!). Receber conforto, carinho e muita energia positiva ao longo da gestação, de quem está perto, de quem se faz presente, fazendo com que os percalços desse caminho tenham se tornado tão leves quanto engrandecedores.
Durante a gravidez um novo mundo se revelou e eu mergulhei fundo. Li muito, assisti diversos filmes. Conheci melhor meu corpo a cada nova fase que se apresentava. Me senti bonita e saudável. Trabalhei e fortaleci meu psicológico para o parto, que seria em um hospital público, com uma equipe totalmente desconhecida. Árduo trabalho. Tive apoio e solidariedade de muitas mulheres-amigas-mães, que compartilharam comigo suas experiências, apontando atalhos, segurando a minha mão, me escutando, me acolhendo. E, no meio de tudo, me vi exatamente no lugar que eu gostaria de estar. Me senti segura. Conheci uma forma mais sustentável de viver a maternidade. Ganhei tudo que precisava para receber um bebê. Reutilizei muitas coisas: de roupinhas a bomba de tirar leite, de berço a banheira, de carrinho a mamadeiras. Tive o parto que escolhi ter. Fui respeitada e amparada pela equipe de plantão naquele 08 de Março tão importante e significativo, e não canso de agradecer aos céus por isso. Pari minha filha em minhas próprias mãos, no Dia Internacional da Luta pelo Direito da Mulher. Fui feliz na Maternidade Alfredo da Costa. Mas conheço muitas mulheres que não foram. Conheço lamentáveis e tenebrosas histórias de violência obstétrica no mesmo local. Entendi que em qualquer lugar do planeta é preciso batalhar por um parto respeitoso, e algumas vezes vencemos a batalha, outras não. Passei a valorizar ainda mais todas as mulheres que se dedicam à luta pelo direito ao próprio corpo na hora de dar à luz.
Me sinto privilegiada. Me reconheço privilegiada. Sou privilegiada. E também um dos meus grandes privilégios foi ter a presença da minha mãe aqui na minha casa no início do meu puerpério. Uma presença fundamental pra mim nessa transição. Tive todo suporte de que precisei, de todos os lados. E quando minha mãe precisou voltar para a casa dela, a um oceano de distância, ficamos nós aqui, com aquela sensação de "E agora?".
"Agora sim começou.", respondi à mim mesma. Meu companheiro trabalhando em dupla jornada, eu e minha filha em casa. Rotina. Aprendizados. Superação. Sobrevivemos. Mergulhadas no mar de ocitocina. Felizes. Apaixonadas. Fortes e saudáveis. Construímos um ritmo nosso. Seguimos no fluxo. Ora enxergando muito apoio, ora não enxergando ninguém a volta. Mas de onde estou agora, me vejo viva e pulsante nessa travessia. A nossa sublime poeta Clarice Lispector diz que "um dos indiretos modos de entender é achar bonito. (...) entender é um modo de olhar. Porque entender, aliás, é uma atitude. O que a gente não entende, se resolve com amor". Sou imensamente agradecida pelas possibilidades e pelos encontros. Meu país sou eu. Onde eu estiver carrego a minha cultura no meu modo de andar, de falar, de cantar, de comer, de me relacionar, de me espiritualizar, de dançar e, claro, de criar minha filha. Passados 14 meses de vida extrauterina da Julieta, percebo que aqui estou porque também pude escolher ser uma mamãe rarará. E assim vou tentando ser a mãe que eu gostaria de ser. Dia após dia. E é ela, uma tuga-zuca de nascença, carioca-alfacinha por natureza, quem vai me mostrar de fato o que vim espiar do lado de cá há 4 anos atrás.
Commentaires